segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Cantiga de Amigo - Parte II

Ainda tratando das Cantigas de Amigo — em que geralmente percebe-se a voz de uma mulher solitária, em contato com a natureza, sofrendo a dor do amor e lamentando a ausência do amado, — veremos a seguir uma se cantiga da autoria de El-rei D. Dinis e a sua tradução.

Ũa pastor se queixava
muit’estando noutro dia,
e sigo medês falava
e chorava e dizia com amor que a forçava:
“par Deus, vi-t’en grave dia,
ai amor!”

Ela s’ estava queixando,
come molher con gram coita
e que a pesar, des quando
nacera, non fôra doita,
por en dezia chorando!
“Tu non és se non mia coita,
ai, amor!”

Coitas lhi davam amores,
que non lh’eran se non morte,
e deitou-s’antr’ũas flores
e disse con coita forte:
“Mal ti venha per u fores,
ca non és se non mia morte,
ai, amor!”


Uma pastora estava a queixar-se
muito estando noutro dia,
e consigo mesmo falava
e chorava e dizia
com amor que a forçava:
“por Deus, vi-te em penoso dia,
ai amor!”

Ela estava se queixando,
como mulher com grande sofrer
e que apesar, desde quando
nascera, não fora ensinada,
porém dizia chorando!
“Tu és senão o meu sofrer,
ai, amor!”

Amores causavam-lhe sofrimentos,
que lhe eram como a morte,
e deitou-se entre umas flores
e disse com dor forte:
“Maldito sejas por onde fores,
porque não és senão minha morte,
ai, amor!”.

Nessa cantiga, o rei trovador fala primeiro um eu lírico que narra a queixa de uma pastora, e ao mesmo tempo a observa. A pastora, que se diz forçada pelo amor e se encontra de coração roubado, faz um monólogo sobre o amigo ausente que a faz sofrer. Essas características, não encontradas na imagem da mulher das cantigas de amor, apresentam certa sinceridade psicológica, em termos de fingimento poético, representando um pequeno esboço do sofrimento amoroso e da vida do campo. Dessa forma, a voz do eu lírico parece identificá-lo no mesmo ambiente ocupado pela pastora, como se estivesse vendo-a naquele instante do flagrante campesino ou como um narrador onisciente que capta e traduz a alma da personagem.

O nível das estruturas rítmicas tem relevância no nível de significado e podem fornecer a chave para uma tentativa de interpretação da cantiga. Distingue-se a presença de certa estrutura narrativa muito próxima da tradição oral pela presença repetitiva do termo aditivo “e”. A repetição desse termo além de dar ritmo à cantiga a aproxima da oralidade, garantindo a musicalidade natural da língua.

Referências:
NUNES, José Joaquim. Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973. 3 v.
<http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/viewFile/4620/3163> Acesso em: 18 set. 2016

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